Deixei –me cair, deixei de sentir que tudo fazia sentido, deixei as minhas lágrimas caírem no chão. Tragédia? Ainda as pessoas diziam que conheciam a dor, o sofrimento, a fome, ou até mesmo a morte. Mas não conhecem nada, só sabem tirar e tirar. Era só nisso que eu conseguia pensar, na dor, no sofrimento, na fome e até na morte. Enquanto estava de joelhos senti o seu sangue cair, espalhar-se pelo chão e escorrer dos seus perfeitos lábios carnudos, que eu costumava beijar apaixonadamente, como se o mundo acabasse amanhã. Tudo o que tínhamos passado eram agora simples memórias levadas pela brisa que a janela aberta deixava entrar. Deitei-me, a seu lado, mexendo nos seus cabelos, que cheiravam a maça, ai aquele shampoo, ai o cheiro do seu casaco, ai o calor das suas mãos quentes. Eu não conseguia, não ali, não com ele. Se eu desistisse, o que faria ele, a sangrar ali no chão, metade morto? Fechei os olhos e mordi o lábio com tanta força, que provavelmente já o teria rebentado, pois sentia o sabor a sangue. Cheguei-me mais perto dele e acariciei a sua face, e murmurei ao seu ouvido : « Vai tudo correr bem. Acredita em mim. » Dei-lhe um leve beijo nos lábios e aconcheguei-me no seu peito. Não podia fazer nada, mas também não podia desistir. Fechei novamente os olhos e cantei, a nossa canção, a canção que nos fez juntar os lábios pela primeira vez, a canção que mudou a nossa vida. Era uma antiga, e que todos chamavam fatela, mas eu não queria saber deles, só ele interessava, ali e agora. Quando acabei de cantar abri os olhos e observei-o, já não se movia, e o sangue parou de escorrer. Mais lágrimas caíram dos meus olhos e fechei os seus olhos lentamente. Eu tinha conseguido, eu tinha. O meu amor, tinha morrido com um sorriso, a apreciar os seus últimos segundos, diante da minha voz rouca, a cantar a nossa música. Acordei e afinal tinha sido apenas tudo um sonho, levantei-me e dirigi-me ao espelho. Tinha novamente a cara cheia de rugas e marcas, e o meu cabelo grisalho não enganava ninguém. Tinha sonhado, novamente, com o meu amor. No dia em que ele morreu, e que me deixou sozinha. Tinha eu a juventude a correr-me pelas veias. Sorri e olhei o céu pela janela, o dia era igual ao dia da sua morte. Ele estava comigo, ele nunca me tinha deixado.