Atenção, alguma violência mas nada muito explicito e ofensas a uma personagem. O corpo de Marie tremia cada vez mais a cada segundo que passava. Não estava habituada a que alguém se sentisse tão curioso por conhecê-la verdadeiramente. Verdadeiramente como quem diz, visto que a rapariga acabava sempre por inventar uma vida que não era a dela, um nome que não era o dela e adquirir uma personalidade que não lhe pertencia.
Desta vez correra-lhe mal. Muito mal. Estava agora frente a frente com o rapaz que considerava diferente desde que o conhecera, desde que os seus olhares se cruzaram numa fila de supermercado.
Bryan media cerca de metro e setenta em cinco, tinha cabelos de um tom aloirado e uns olhos claros, azuis, enfeitiçadores; vestia-se sempre de cores escuras, como o preto ou o castanho, que lhe assentavam que nem uma luva. Esse mesmo rapaz tinha enfeitiçado a rapariga logo no primeiro olhar, no primeiro sorriso e, passado algum tempo, foi ele quem reuniu coragem ao convidá-la para sair. Já se tinham visto cerca de cinco vezes…
No primeiro encontro, Marie inventara que se chamava Sophia e, embrenhando-se mais na mentira, inventou uma família que não era a sua. Inventara que vivia numa luxuosa vivenda, num bairro luxuoso; falara que a sua família era muito unida e que não sabiam viver uns sem os outros.
Mas Bryan descobrira a verdade dum momento para o outro, tudo porque a tinha visto seguir, muitas vezes, para a pensão; ao relembrar-se de todas as mentiras que já contara e na forma como todas as pessoas tinham caído, riu-se ironicamente.
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Importaste de me contar a verdade, Sophia? – Bryan abanou a cabeça sem abandonar o seu semblante chateado. –
Oh, espera. Talvez nem te chames Sophia…Marie parou de rir ao ver a desilusão no seu olhar; os seus olhos não conseguiram prender-se no dele por muito tempo e ela sentiu-se mal por tudo o que inventara.
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Queres saber a verdade? – ela disse friamente; o rapaz assentiu, decidido a ouvi-la.
Após uma pausa, Marie começou num tom de voz baixo:
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Antes de tudo, chamo-me Marie. Tenho dezassete anos e vivo através das mentiras que conto aos outros. – abanou a cabeça, desiludida consigo mesma. -
Vivi na rua durante anos, desde os oito, na verdade. O lar em que os meus pais me deixaram faliu e ninguém me quis adotar; na verdade, todos foram adotados, menos eu. – olhou a mesa branca, onde jazia duas chávenas de café vazias. –
Há cerca de um ano, fui viver para uma pensão, onde trabalho. Esse mesmo trabalho faz com que não tenha que pagar estadia e o pouco que recebo é para alimentação e o resto, como roupas.Bryan olhava-a com a pena a transparecer e ela notou isso; arregalando os olhos, abanou a cabeça freneticamente e levantou-se.
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Não, Bryan. Não sintas pena. Afinal de contas, mereci tudo isto. – riu-se sarcasticamente. –
Afinal de contas, tinha apenas dois anos e disparei uma arma contra o meu irmão. Mereço tudo isto que me está a acontecer.A boca do rapaz abriu-se, incrédulo e, gaguejando, perguntou: -
Como?
- Ouviste bem, Bryan. O meu pai deixou a arma carregada sobre a mesa; estava a brincar com o meu irmão e premi o gatilho. – o olhar que a rapariga lhe lançou era triste mas rapidamente voltou a tornar-se no olhar sem expressão a que o rapaz já se habituara. –
Matei-o. Se já era odiada por aqueles que me puseram ao mundo, depois disso ainda mais. Livraram-se logo de mim.A mão do rapaz alcançou o braço de Marie e ela estremeceu perante tal contacto.
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E porque mentes? – ele perguntou, baixo, inclinando o seu corpo para o dela.
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Porque é mais fácil. – limitou-se a dizer enquanto se movia para afastar o contacto que Bryan criara entre ambos. –
Porque assim não me podem conden…
- Eras uma criança. – Bryan reclamou logo, interrompendo-a. –
Como podias…? Como podes culpar-te?Ela riu-se de forma amarga enquanto todo o seu rosto se mantinha impassível.
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Porque sou a culpada. Levantou-se, arrastando a cadeira pela madeira da esplanada. – Se me dás licença.
Pousou uma moeda para pagar a sua parte da despesa e abandonou o local com um passo apressado; quando chegou a uma rua, correu entre a escuridão daquele local sem iluminação, sem movimento.
Assim que chegou à pensão, ao seu local de trabalho, entrou e encostou-se à parede, tentando regularizar a respiração; ouviu o som de passos e imobilizou-se, vendo quem se aproximava.
Ela conhecia aquele homem, sem dúvida; fixou o seu olhar nele enquanto ele a olhava com nojo. Raiva.
Continuou a caminhar na sua direção, tornando o barulho das botas pesadas a bater no soalho cada vez mais forte; quando ficou apenas a um passo de distância, estendeu o braço e esbofeteou-a.
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Cabra. – acusou. –
Assassina. Sabias que ele era o meu preferido e mataste-o. – empurrou-a com força contra a parede e continuou a esbofeteá-la, juntando mais adjetivos à lista.
Patrick Sparks, o seu pai. O homem que já não via à anos; o homem que a odiava.
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Por tua causa a minha mulher morreu. Por desgosto por teres morto o único filho que amávamos. Cabra. – levou as mãos à garganta da rapariga, apertando-a com força.
Os olhos claros, verdes, de Marie arregalaram-se enquanto ela lutava por respirar sem, contudo, conseguir; ao fixar os olhos da rapariga, a fúria de Patrick pareceu tornar-se ainda mais intensa por aqueles olhos fazerem-no lembrar os de Sam, o rapaz que tinha apenas sete anos e morrera.
Quando o corpo da rapariga ficou suspenso no ar, sem mais forças e com as marcas das mãos de Patrick a estrangula-la, ele largou-a e viu o seu corpo morto a cair aos seus pés; com um sorriso maldoso, pontapeou a filha.
Na verdade, ele sabia que era o culpado. Afinal de contas, fora ele que deixara aquela arma carregada sobre a mesa, ao alcance de qualquer um. E era por isso remorso que ele continuara a culpar Marie. E era também a razão pela qual tinha acabado por matar a sua única razão de vingança.
O problema era que todos os remorsos se multiplicariam, assim que Patrick voltasse ao normal e percebesse que, no caso de ser descoberto por ter sido pouco cuidadoso, iria passar o resto da sua vida atrás de umas grades, junto a uns marginais quaisquer. Preso na escuridão de uma cela.