O pó fazia questão de pairar no ar e as teias aglomeravam os móveis. Jonathan tentava suster a respiração, mas era impossível e lá tossia uma vez ou outra. O sótão do avô, um santuário, encontrava-se agora mais como um cemitério de memórias e sabedoria. Nunca o conhecera; apenas lhe diziam que tinha partido para um sítio melhor. Diziam que tinha uma mente brilhante, de louco até! Que tinha ideias fixas, mas doentes. "Enfim, coisas de velho" diziam... E como herdeiro, achava-se no direito de vasculhar o (outrora) lugar sagrado do defunto. Sim, estava no seu direito. Mas a questão é quão cara lhe sairá esta afronta?
O seu olhar, que percorria o local praticamente sem ver devido ao pó, fixou algo. Os olhos mal pestanejavam, tal era o espanto e fascínio. Examinou bem o objecto e soprou-lhe, qual bolo de aniversário. Sentou-se na cadeira antiga, que chiou no instante de contacto, e deslumbrou-se com o que tinha à sua frente. A máquina de escrever do sr. Marvery, seu avô. Uma relíquia!
As letras sempre foram o forte de Jonathan, e ele nem queria acreditar no que estava a ver. Talvez fosse de família, algo que herdara do avó que nunca antes conhecera.
- Jon! - gritava a avó por ele. - Desce daí, isso está tudo sujo!
Jonathan nem sequer ouvira. Estava demasiado impregnado naquela visão magnífica.
Esticou os dedos. Tinha quase medo de tocar na máquina, que tal relíquia se quebrasse diante dos seus olhos. Tocou nas teclas com as pontas dos dedos.
Um arrepio atravessou-lhe a coluna, alastrando-se pelo corpo chegando à alma. Pálido, ficou ainda mais absorvido na máquina. Era como se a máquina vivesse, como que se respirasse!
"Tolices, tanto pó já te está a subir à cabeça!" pensou.
Levou os dedos de novo ao encontro da máquina. Pousou, e sentiu a vida da máquina. De repente, uma onda de escuridão cegou os seus olhos e paralisou a sua mente e o seu corpo. Um estado de transe possuía-o, como se tivesse desligado. O desespero apoderava-se de Jonathan, que tentava livrar-se de tal "feitiço". Quando voltou a si, deixou-se cair na cadeira, sufocado com o momento. Dava grandes goles de ar mas a única coisa que respirava era pó, o que ainda o afligia mais. Suavemente recuperou, recompôs-se. Os seus olhos estagnaram de repente, e os seus músculos ficaram novamente paralisados, tensos, mas desta vez não se devia a transe nenhum.
Por cima da máquina, uma folha repousava. Uma folha já velha, com resíduos de poeira. No entanto, a folha que antes estava em branco estava agora com tinta. Marcas de tinta. Letras.
Alguém tinha escrito naquela folha. Jonathan tinha escrito naquela folha. E nem ele próprio o sabia.
Atónito e apavorado, levou a mão trémula à folha e passou-lhe os olhos ao de leve até que começou a ler o que escrevera inconscientemente.
Entes,
Um dia tenebroso para todos vocês chegou por fim. Sim, "por fim". Eu sempre soube da sua chegada, nunca soube foi o tempo. E aqui chegou ela.
Despeço-me. Vivi a minha vida, sorri o que tinha a sorrir e chorei o que tinha a chorar. Descobri tudo o que havia para descobrir, a minha inteligência está farta de assuntos reles de quotidiano. Vou descobrir o que nenhum outro homem descobriu: a Morte. Se ela não vem a meu encontro, vou eu ao dela. Porque só alguém como eu lhe dá a volta. Chamem-me louco, mas eu apenas quero descobrir. Atingir níveis para lá da compreensão humana. Um dia irão compreender... Ou não.
Deixo todo o meu amor na minha esposa Veronil Slary. Deixo o meu cachimbo ao velho Gaston Gutter. Ao meu filho, deixo-lhe a minha casa e os meus bens - que sei que os vai usar bem e partilhar com a sua mãe. Não tenho muitas condições a fazer, apenas uma: quero deixar a minha máquina de escrever que tanto me ajudou ao meu futuro neto.
Enterrem a navalha comigo. É muito importante para mim, um presente de meu pai, pois ela foi a causa da minha partida à descoberta e por isso lhe estou grato.
Lamento,
Marley Marvory.
As lágrimas de incredulidade escorriam pela face de Jonathan. Escorriam, juntamente com o sangue que saia dos seus pulsos. A navalha do seu bisavô caiu-lhe da mão, como a carta do avô que lhe roubara a vida.
Onde outrora escorrera sangue de um louco, escorria agora o mesmo sangue, mas de um inocente.