Há muito que este (re)encontro era esperado. Talvez pedido em segredo aos céus por ela e dentro de horas, sem uma previsão pontual, iria ser algo verídico, deixaria de ser uma história inventada numa noite de insónia. (...)
Ela, de tez pálida e cabelos ruivos aquando ao sol, permanecia sentada num banco segurando o seu livro preferido, "
O Diário da Nossa Paixão" lendo-o, por vezes, nas entrelinhas espreitava o comboio demorado. Mal conseguia fixar as letras, os seus pensamentos pareciam aves de rapina dentro de si, os nervos eram desconfortantes, cada vez mais enraizados, fazendo-a tremer e inquietando a sua respiração.
Depois de minutos mascarados de horas, o comboio que o traria até ela, avistava-se agora ao longe. Fechou o livro, ajeitou-se e respirou fundo, como se à muito não tivesse fôlego. O comboio foi abrandando e, vagarosamente, parou. Tinha receio de não o reconhecer no meio de tanto desconhecido mas, assim que ele assentou o primeiro pé na plataforma e ela o conseguiu mirar, foi invadida por um forte entusiasmo e pensou «
é ele, é mesmo ele», apresentando um sorriso arrebatado.
E era, o seu amado, empregando calças de ganga e uma t-shirt azulada, distinto pelos seus olhos quentes, inconfundíveis, pela sua boca carnuda e ousada e pelo cabelo nada arranjado. Era um pouco desleixado mas, essa era uma das razões pela qual o achava tão adorável.
Ele ia-se aproximando. Nunca o vira tão convicto ao caminhar para si. Os nervos estavam a incomodá-la, sentira-se por momentos a enfraquecer com tamanha tensão e, ao estarem cara a cara, estagnou, não movendo nem um único músculo, no entanto, ele beijou-lhe a face e perguntou com a sua voz rouca e grave, "
Vamos?". Ela como se do nada acordasse, acenou e como em meio de embaraço tentou acompanhá-lo.
Não sabia onde o levar, se o iria dar a conhecer ao rio ou até ao jardim, a indecisão era permanente mas, como se de um reflexo se tratasse, indicou o caminho para os lados do rio - onde tantas vezes caminhou sozinha, limpando lágrimas ou espalhando murmúrios.
Permaneciam calados, distantes. Pareciam tratar-se de dois desconhecidos procurando a paisagem. Parecia que todas as horas de conversas usufruídas ali não tinham qualquer sentido. Não reconhecia quem tinha ao seu lado, era ele sabia-o exteriormente mas, seria mesmo conhecedora do homem agora, junto de si?
Sentou-se num banco e fez-lhe sinal para fazer o mesmo. Dali dava para ver a ponte sobre o Tejo, preenchida de movimentos e rapidez e, como a noite não tardaria em se fazer ver e as luzes começariam a dar sinais de vida. Apontou para lá e disse timidamente:
- Já viste a ponte? Não demora muito e vai estar decorada de luzes, vai ser lindo de se ver.Ele sorriu e respondeu:
-
Nada melhor que uma vista dessas... Ainda por cima tão bem acompanhado.Ela deu uma leve pancadinha no seu braço e fez um gesto de "não-digas-disparates" e docemente sorriu.
Os assuntos banais foram surgindo naturalmente. As risadas foram ganhando ruído, o desejo e arrependimento escondido nos corações de ambos, a timidez desaparecendo e a intimidade coordenando os gestos e também o ambiente entre eles.
Agora sim, poderia afirmar ser ele o rapaz-homem que ela amava, sempre com um bom disparate ou um piropo para atirar mas, ela queria mais. Queria abordar um assunto de que ela própria fugira por vagas horas.
-
Olha... – gemeu ela.
Ele olhou-a nos olhos e respondeu um atencioso «
Sim, menina».
Ela respirou fundo e arrancou de si uma coragem inexistente.
-
Eu sei, eu sei que à muito te perdi... - disse, desviando o olhar -
Que o nosso amor já viveu o que lhe foi decidido, e também, que não pode ser resgatado... Mas ele é verdadeiro, eu sinto-o em mim… Eu amo-te.A hesitação era muita, tal como as pausas, mas forçou a voz tentando manter-se segura de si e insistiu:
-
Sempre fui tua, até quando jurava estar livre de tal paixão. Sempre serei, até mesmo quando me disserem que o tempo me curou a tal ferida.Um silêncio compôs-se ali, naquele mesmo instante, e ela sem conseguir conter, baixou a cabeça e as lágrimas pareciam chuva fazendo o percurso do seu rosto entristecido.
Ele com firmeza, levantou-se e dirigiu-se para a berma onde conseguia avistar melhor o vasto rio, ficando de costas para ela. Pensou por instantes no que haveria de dizer. Tudo parecia demasiado vulgar para lhe pronunciar, a ela, à rapariga que acabara de citar o amor que os dois um dia haviam vivido em conjunto.
Ela não conseguia estancar as lágrimas que caiam, era demasiado para ela. Nunca se tinha declarado a outrem. Nunca sentira tamanha dor no peito e, por isso, discretamente, abandonou o local sem retorno agendado, sem querer ouvir o que ainda havia a ser dito.
Sem se aperceber da aparente fuga, exclamou:
-
Não perdes-te, eu estou aqui. - Inspirou bruscamente, vasculhou no seu interior as palavras e então continuou,
O nosso amor é o nosso destino… Eu sou teu como no primeiro dia, mesmo quando a ausência está cravada entre nós... Menina, eu am…Virou-se num lance e engoliu em seco. Observava agora um banco vazio, apoiando apenas um livro, procurou-a com os seus olhos castanhos e pequenos, mas sentia que ela não se encontrava já perto. Teria sido uma miragem? Claro que não, ela tinha estado ali, sentia o seu perfume mas, foi como se um vento a tivesse roubado dele num sopro.
Aproximou-se do banco, encaixou o livro nas suas mãos e abriu-o. Um pequeno papel meio amarrotada, marcava a página 96 e tinha em si algo copiado do mesmo:
"E sei que gastei todas as vidas antes desta à tua procura. Não de alguém como tu, mas de ti, porque a tua alma e a minha têm que andar sempre juntas. E assim, por uma razão que nenhum de nós entende, fomos obrigados a dizer adeus um ao outro."Ele leu aquilo e certificou-se que as lágrimas tinham sido apagadas, olhou o papelinho de novo e avistou pequenas letras do outro lado,
«Um adeus, que só eu sei o que me custa dizer, amei-te, ainda o faço e por muito tempo o farei. Sentirás o meu amor em ti, todos os dias sem excepção. Um beijo em jeito de despedida.»Guardou os pertences dela consigo. Limpou a cara e fitou as incontáveis cores que agora se acendiam sobre si, era a tal vista que tanto queria ter visualizado com ela.
Retomou ao comboio que o levaria para longe, sem olhar para trás, sabia que não amaria ninguém sem ser aquela menina – a sua menina de olhar doce e sorriso encantador, - que estivera com ele à momentos atrás.
Ela porém, de longe, fazendo de sua companhia a noite, continuou a sua mágoa, viu-o partir e entre choro e soluços, citou:
-
Queria que me amasses, como em tempos passados. O nosso pequeno segredo.Desapareceram da vida um do outro desde então, a última recordação dela é aquele banco e local. Dele, o livro e o papel que ainda hoje guarda.
O amor e o segredo entre eles permanecem e permanecerão intactos. Mesmo quando outros teimam em dizer que se dispersou entre as luzes daquela noite, convertendo todas as seguintes, em noites mais iluminadas, brilhantes e intensas, onde agora outros amantes se amam, em semelhante segredo.